quarta-feira, 1 de julho de 2015

Anatomia Poética (Entre-Vista entre-Versos): Marcelo Reis de Mello #6

A entrevista poética do Mês foi com o Marcelo Reis de Mello, que tive a honra de conhecer graças à indicação do meu camarada Matheus José Mineiro. Marcelo trabalha como poeta e tradutor, além de ser um dos editores da Cozinha Experimental e da Revista Chão.

 

Marcelo, quando e como começou a escrever?
Comecei a escrever quando percebi que era baixinho demais pra ser atleta, anarquista demais pra ser rico e tímido demais pra fazer sucesso com as meninas. Na verdade comecei por pura e simples inveja, uma dor-de-cotovelo incurável que começou quando o grupo de teatro da escola, no ensino médio, encenou uma peça do meu irmão Eduardo: "O Diabo e o Mortal" é a minha primeira grande neurose literária. Depois, comecei a me arriscar mais quando descobri a poesia e a morte juntas, através de um livrinho lindo do
rodrigo ponts (o nome sempre assinado em minúsculas, à la cummings), que era apenas dois anos mais velho do que eu e foi levado por um câncer, aos 24. Nós nem chegamos a nos conhecer pessoalmente, mas ele era irmão de um grande amigo de Curitiba, o Ricardo Pontoglio. Esse cara me deixou marcas profundas, tanto que nunca o abandonei. Já produzi um audiolivro com alguns de seus poemas, estou ajudando a editar as traduções inéditas que ele fez do cummings, pela Cozinha Experimental, montei uma página para organizar seu legado, dediquei um poema pra ele no meu primeiro livro e, como o aprendizado não acaba, um dos seus poemas serve de epígrafe ao meu próximo trabalho: "é vão/ e tudo é vão/ da oca-luz do brilhante/ ao escuro-vazio do carvão/ (...) vão-se os anéis/ os dedos/ vão-se, também,/ as mãos// tudo o que é/ escorre-se à vanidade/ extinta// só sobra o nada/ o sem bordas/ o incolor/ o vão// mesmo ele/ em vão/ esvai-se". Acho que no fim das contas estamos sempre começando a escrever. Como disse o Murilo Mendes: "nascer é muito comprido".

O que te inspira?
Uma senhora chamada
Sei Shonagon, dama da imperatriz Sadako durante os anos do sec. 10, anotava em seu Livro de Cabeceira enumerações e listas de coisas agradáveis ou desagradáveis, "coisas odiosas", "coisas adoráveis" ou "coisas que estão próximas, apesar de estarem distantes". Acho que se formos falar de inspiração hoje em dia, não deveria ser a partir daquela perspectiva platônica, em que o poeta participa de um êxtase (ék-stasis = sair de si), magnetizado por uma força ininteligível. Poderíamos então nos contentar com uma enumeração dessas coisas mínimas que acontecem por aí a qualquer hora, dos infinínfimos que fazem o coração latir mais alto, às vezes, como me ensina a Sei Shonagon:

Pardais que alimentam suas crias.
Passar por algum lugar onde brincam crianças.
Dormir em um quarto onde se tenha queimado
incenso. Notar que um elegante espelho chinês está
um pouco úmido. Ver um cavalheiro que pára sua
carruagem em frente ao nosso portão e ordena que
seus empregados o anunciem.
Lavar o cabelo, enfeitar-se e pôr roupas perfumadas.
Mesmo que ninguém o veja, sentimos um prazer íntimo.
É noite e se espera uma visita.
De repente nos surpreende o som das gotas de chuva
que o vento atira nas persianas
.

Essas mesmas gotas de chuva reaparecem num poema precioso do argentino Julio Cortázar, que se pode ouvir recitado em sua própria voz, no YouTube:
Depois de Baudelaire, daquele Cisne e daquele Albatroz caídos, as questões poéticas já não são celestes. Ouço sempre o que diz o João Cabral de Melo Neto: "Você vê os gregos: o Pégaso, o cavalo que voa, é o símbolo da poesia. Nós deveríamos botar antes, como símbolo da poesia, a galinha ou o peru — que não voam. Ora, para o poeta, o difícil é não voar, e o esforço que ele deve fazer é esse. O poeta é como o pássaro que tem de andar um quilômetro pelo chão". Evidentemente não se trata de criar uma fórmula telúrica e pedestre para a poesia, mas apensas de compreender que mesmo (ou principalmente) um poeta sublimão como Roberto Piva, por exemplo, é um cisne sujo e perdido entre animais de feira. Essa vida suja é o seu poema sujo e vice-versa. Quanto ao poeta que finge não sentir cheiro de merda, bom, esse tem que tentar fingir melhor que os outros.

Quais são seus superpoderes?
Olha, cara, eu tendo a simpatizar mais com Calvin e Haroldo, Mafalda e Liniers do que com os X-Men, Batman ou o Demolidor. Pra mim um superpoder admirável é aquele traço reconhecível em boa parte das crianças: a capacidade de se espantar com o mundo. A capacidade de se deparar com uma samambaia pela primeira vez, ainda sem saber o nome das coisas, esbugalhar os olhinhos úmidos e começar a rir, rir, rir. E só digo que é um superpoder porque eles fazem isso sem maconha, sem ácido, sem MDMA, só a delícia gratuita de pirar com as imagens, antes de aprender os nomes que cada coisa tem. Esse instante que precede a linguagem verbal, a infância (in-fans = o que não tem fala) talvez seja o superpoder dos poetas. Ou aquele superpoder que os poetas mais gostariam de ter. Manoel de Barros era obcecado por isso. Francis Ponge renomeia para reencontrar o espanto de cada coisa, sua verdade. Arturo Carrera, um dos poetas mais geniais em atividade hoje, escreve linda e maliciosamente a partir daí. Sem falar em Alberto Caeiro, que só se tornou professor dos outros heterônimos e, inclusive, do próprio Fernando Pessoa, porque soube encontrar o “pasmo essencial”:

E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento

O que tem lido de bom? Ou de ruim?
To sempre tentando ler um pouco de
tudo, pra não ficar como esses poetas que só sabem ler e falar de poesia o tempo todo. Gosto muito de ler, por exemplo, os relatos naturalistas que recebo de um biólogo iluminado chamado André de Mejer, que mora no meio do mato lá na serra paranaense. Em certo sentido posso dizer que ele é o melhor poeta do mundo, atualmente, e meu sonho imediato é publicá-lo pela Cozinha Experimental. Também estou sempre pirando com os livros do Ítalo Calvino e recentemente estive na companhia do senhor Palomar, com a Coleção de Areia e com as maravilhosas Fábulas Italianas. Também estou lendo ardorosamente os quadrinhos de Calvin e Haroldo que o Germano me emprestou. De ruim tenho lido muitos originais de poetas iniciantes movidos pela pressa de publicar, pela impaciência ao terem que conviver com os próprios defeitos. As editoras são incontáveis e a tecnologia digital facilitou, por isso qualquer um publica um livro. O que obviamente não garante nada, porque escrever continua tão difícil como sempre foi. Aos poetas que estão começando agora, recomendo a Oficina Experimental de Poesia que rola aqui no Rio desde 2010. Não é exatamente uma oficina, na verdade não acredito no bom mocismo didático que circula por aí, reproduzindo certos padrões americanizados de “creative writing”. Mas os poetas que tocam esse projeto fazem uma coisa linda, que é misturar a seriedade da leitura, o esforço crítico desburocratizado e o uso do corpo, da força do corpo pra fazer surgir alguma coisa, nem que seja um grito. Aliás, muitas vezes as pessoas só precisam dar um grito e se confundem, achando que é um livro. Vão lá e conversem com o Heyk Pimenta, o Rafael Zacca, o Guilherme Gonçalves, que além de gente da melhor espécie são excelentes poetas.

Oficina Experimental de Poesia!!! Eu sou um furão, Marcelo, pois sempre digo que vou e na hora dá bode. Fala um pouco do projeto, tenho ouvido muitos elogios.
A Oficina Experimental de Poesia foi idealmente concebida durante uma viagem de carro que eu e o Heyk fizemos a São Paulo em 2010. Voltávamos de uma exposição de cartazes feitos em parceria com designers e outros poetas, o
Projeto Pálpebra, aí começamos a pensar num modo de reunir pessoas que quisessem ler e fazer poesia com um olhar nem exclusivamente acadêmico nem apenas festivo; um encontro que não se parecesse com um sarau nem com um velório. No começo vinha pouca gente, às vezes éramos só nós, ali, lendo e comparando clássicos e contemporâneos, Gôngora a Ginsberg, Olavo Bilac a Décio Pignatari. Depois o grupo foi crescendo, eu saí durante um tempo e outras pessoas chegaram, hoje a Oficina recebe muita gente e a coisa é mais organizada. A verdade é que eu tenho dificuldade de lidar com qualquer tipo de grupo... lembro recorrentemente daquela crítica do Baudelaire aos “espíritos belgas” em Meu Coração Desnudado: gente que só sabe pensar em bando. Mas esse grupo é muito heterogêneo e não bota ninguém em fôrma de modelar, isso é fundamental. Posso dizer que ali se aprende no mínimo a escrever e criticar com mais humildade e objetividade. E não há seleção elitista, o troço acontece na Zona Norte do Rio toda quarta-feira e é de graça.

Escrever já deu ou te dá grana?
Escrever, não. Traduzir tem me rendido uma graninha eventual, mas ainda não juntei meu primeiro milhão. Quando cheguei ao Rio, mais duro que Durango Kid, fui convidado pelo Heyk para alguns projetos que também renderam bons trocados. Nossa parceria começou com apresentações bonitas de poesia em eventos aqui no Rio e no interior do Estado.

Tem algum Momento Ímpar que poderia nos relatar como poeta?
O que falta de grana sobra em momentos ímpares. Esse é o lado bom da coisa. Como você me pede um só, vou dizer que o grande momento foi cantarolar uns sambas do Nelson Cavaquinho para minha avó Regina, na mesa do jantar, pouco antes de ela se encantar: “O sol há de brilhar mais uma vez / a luz há de chegar aos corações (...)”. Como diz o carteiro do filme O Carteiro e o Poeta, “a poesia não é de quem faz, é de quem dela precisa”. 
Geralmente eu pergunto "Se alguém xerocar “o nome do livro do poeta,” e passar adiante, isso iria te incomodar?" Mas vendo o seu trabalho na Cozinha Experimental, creio que essa pergunta não funciona, pois os livros já estão disponíveis gratuitamente em versão virtual. Como é isso? Deixar a obra livre para baixar e ainda assim vender os livros de forma impressa?
A política editorial da Cozinha Experimental reflete a nossa política pessoal, a minha e a do Germano. Nós dois simpatizamos muito com a pirataria na maior parte dos casos. A arte não faz sentido ali, encastelada em copyrights elitistas. Não somos a favor da usurpação sumária dos direitos do autor, nem contra os rendimentos que ele possa eventualmente obter com a venda das obras nas livrarias. Mas também acreditamos na importância de fazer o conteúdo dos livros chegar a quem precisa, não apenas a quem pode comprar. 

 

Se você morresse hoje o que faria amanhã?
Aí depende do círculo. Eu gostaria de cair no primeiro, pra bater um papinho com Homero. Ou então no segundo – que deve ainda mais entretido – com Cleópatra e Helena por perto.

E os projetos futuros? Tem algum em mente?
Por hora os planos são concluir o doutorado, seguir escrevendo aos poucos e investir mais na Cozinha Experimental. A editora está com um projeto bonito em parceria com a
Azougue Editorial, do amigo Sergio Cohn, e ainda em 2015 começaremos uma coleção de poesia brasileira com nomes excepcionais e um projeto gráfico diferenciado. Compramos até uma máquina tipográfica pra fazer esses livros. Há outras possíveis parcerias sendo negociadas também, com outros grupos pequenos e sérios: Dodo Publicações, Revista Usina, Bliss não tem Bis, Garupa, etc., além de instituições como a LIBRE (Liga Brasileira de Editoras). Aliás, essa é uma casa a ser visitada pra quem estiver planejando ir à FLIP. Em 2014 a Cozinha Experimental esteve por lá falando sobre o seu selo poético pornô, o Cuzinho Experimental, e nesse ano eu volto para mediar uma mesa muito interessante sobre Poesia e Produção de Pensamento com os poetas Luis Maffei e Zé Luis Rinaldi.

Indique um Sarau que a gente tem que conhecer:
Indico a Vielada Cultural, que rola numa quebrada lá em São Paulo, no Morumbizinho. O evento produzido pelo coletivo Vi Ela En Close (Giovani Baffo, Ana Carulina Laet, Rita Barros, Leo Sarmento, Tiago Ferraz e Edgar Bueno) é uma das coisas mais bonitas que eu já vi na vida, sem brincadeira. E recomendo também, se me permite, o lindo Sarau da Dalva que acontece no Bar do Manoel, em Campinas, organizado pelo querido Rafa Carvalho.

Indique um poeta que precisamos entrevistar:
Indico o Thiago E, um poeta do Piauí. 


Deixa um poema aqui nesse blog:

ODE ÀS CIGANAS
Confio apenas nas ciganas,
as que amanhã ou depois
chegam arrependidas.

Confio apenas nas ciganas
que esvoaçam
em lenços coloridos
e lancinantes,
não confio nas mães de mãos cansadas
nem nessa água morna e parada
(amor, amor, amor)
onde a dengue põe seus ovos.

Confio apenas nas ciganas
com seu desejo de volúpia e vento,
de pólen, de asas
e um ranger de rodas dentadas
com seus caminhões impossíveis.

Confio apenas nas ciganas
que me deixam sábias, lentamente
por algo maior que o homem
(muitos homens)
maior do que este calmo jardim
e os lindos rastelados canteiros
de tédio e ópio e ontem.

Confio apenas nas ciganas,
as ciganas sabem
que o mundo é esse engano:
o mundo,
o primeiro ninho dos pássaros
e a pá sobre a cova das palavras.

Para nossas ciganas somos cigarras
agarradas ao tronco
do nosso canto,
nosso fogo
fátuo,
chicote nas patas
do tempo.

Confio apenas nas ciganas,
mais damas que as damas
quando declamam em nossos ouvidos
um sem número
de epifanias delicadas
até fenecerem em cada porto
como um feto numa garrafa
de vodka.
 

Ah, ciganas... não tenho poemas para expressar
o quanto odeio os ciganos.
 
deixe um recado para seus fãs...
A poesia não rende fãs sem um bando ou uma banda por trás, mas deixo aqui um fragmento do rodrigo ponts: "ver / em tudo / o brilho / é olhar / do ponto / de vista / da luz".
 
um outro recado para os que não gostam do seu trabalho...
"Oh dark! Dark! Dark! They all go into the dark!"

... e um para os que ainda não conhecem o seu trabalho ...
Vou citar aquela cena maravilhosa do filme Waking Life, do Richard Linklater - "I don´t want to be an ant" - quando dois personagens se esbarram e um deles diz: "Sei que não nos conhecemos, mas eu não quero ser uma formiga. Quer dizer, é como se nós passássemos pela vida com nossas antenas esbarrando umas nas outras, continuamente no piloto automático, como formigas, sem que nada realmente humano seja solicitado de nós. Pare. Vá. Caminhe por aqui. Dirija por ali. Ações voltadas basicamente à sobrevivência, comunicações simplesmente pra manter a colônia de formigas funcionando de maneira eficiente e civilizada. 'Aqui está seu troco'. 'Papel ou plástico?', 'Crédito ou débito?', 'Quer ketchup?'. Não quero um canudo, quero momentos humanos verdadeiros. Quero ver você, quero que você me veja. Não quero desistir disso. Eu não quero ser uma formiga, entende?".
 
Você me deu muitas respostas, tem alguma pergunta pra mim?
Rapaz, a gente ta na mesma canoa furada, nessa mesma luta vã com as palavras (como já disse o velho e bom Drummond). No entanto, sei que você é um poeta muito ativo, que está sempre fazendo muita coisa por aí, trabalhando em experiências sonoras complexas e atrelando sua escrita às performances públicas, além de se meter nesse corpo-a-corpo complicado das entrevistas. Então fiquei curioso pra saber por que o universo da poesia lhe interessa tanto, Tiago. Tem um porquê?

Eu não acredito em inspiração, não acredito em talento e tão pouco em uma missão maior, eu acho que é instinto. Não tem como não fazer,  preciso produzir um conteúdo poético ou então adoeço. E não é escrever em um caderninho que só eu tenho acesso, o poema tem que ir, e só voltar se ele tiver vontade. Há uns doze anos atrás eu descobri que tinha uma puta úlcera estomacal e fazia mil tratamentos, ela só parou de doer quando encontrei o sarau e os espaços poéticos derivados. Saca? Poesia me faz viver.

Um comentário:

  1. ...de-de-de-de-de-de-li-cio-sa entrevista! cheia de referências legais, profundas até, e ... gostei, só isso. valeu - abração aê pro dois poetas - pintem no Ratos qq dia, será uma grande satisfação! evoé!

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